O conto do homem-lodo

Maria Mota
3 min readOct 26, 2022

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Eram umas dezesseis para dezessete horas e o sol despontava no céu apenas por obrigação; ainda queimava, mas com um ar de quem conta no relógio os minutos para encerrar o expediente. “Entra logo na água. O sol já já vai embora, e se esfriar, você não entra mais.” Sabia que ouvia alguém dizendo detrás de mim, ou por dentro. Tinha essa sensação ao ver o tempo passar e as sombras mudarem de lugar, acompanhando a posição de seu mandante.

A casa era de uma senhora amiga; não vi seu rosto, mas era amiga. No quintal, duas piscinas. Saltitei caminhando entre o vão que separava o chão seco da borda. O sol cansado refletia com maior ardor na piscina ao fundo, que era menor. A piscina grande era coberta por um teto que impedia o sol de aquecê-la por inteiro. A piscina menor era curiosamente interessante: a água tinha uma cor feia, escura, esverdeada, e os ladrilhos me traziam uma sensação de nostalgia. Já havia visto essa piscina? O subconsciente já havia me instigado o bastante para que eu decidisse, repentinamente, escolhê-la como a piscina que eu adentraria.

Contudo, não o fiz. Fui surpreendida pela presença das outras pessoas, que na verdade, sempre estiveram ali, enquanto eu me distraía tentando decifrar o abstrato que a piscina feia me causava. Eram umas cinco pessoas de rostos indescritíveis, não por estarem desfiguradas, mas por me falhar a memória. Um dos presentes, respondeu à pergunta que não o fiz:

Aquela piscina não. Vamos entrar nesta aqui” enquanto adentrava a piscina maior e muito mais chamativa do que aquela que eu passara minutos encarando a ponto de esquecer-me da existência do restante das coisas ao meu redor. Todos já estavam dentro dela, menos eu.

“Porque ela é suja, não vê? E lá também mora o homem-lodo. ” — Respondeu, desta vez, à pergunta que eu tinha feito apenas em pensamento. Homem-lodo? Enquanto me descreviam os perigos da piscina ao lado, eu a observava. Assim que a palavra lodo entrou em meus ouvidos, vi, dentro da água da piscina proibida, um punhado de lodo ‘enfeiando’ os ladrilhos. Eu não havia o visto, ou reparado nele antes. No mesmo instante, vi outros punhados de lodo dançando na água, dando piruetas, contornos, pulos e saltos — era o tal homem-lodo — e ele seguia entretido com sua própria coreografia na piscina vizinha. Parecia não ouvir, ou não se importar com o que diziam dele em alto e bom som.

Não sou dessas que julga o desconhecido, mas também não sou um dos espíritos mais teimosos que conheço; aceitei a ideia de não adentrar a piscina feia. Os minutos passaram como milésimos de segundo, e, subitamente, num piscar de olhos, o homem-lodo estava dentro da piscina maior. Ele esticava a mão esquerda para fora da água, indicando que queria ajuda para sair. Eu não sabia quanto tempo tinha se passado e não enxergava as pessoas em volta, mas sabia que elas estavam lá; eu só sentia a presença delas. Percebi que nenhuma delas tinha a intenção de ajudar o homem-lodo pelo silêncio que ecoou enquanto ele clamava por ajuda além do olhar terno — lembro-me de ter ouvido sua voz, em tom brincalhão, como se tivesse intimidade não só comigo, mas com todo os presentes. O homem-lodo não parecia querer ajuda dos demais, pois olhava diretamente pra mim, como se soubesse que eu o ajudaria, sem hesitar.

E assim realmente o fiz. Me aproximei da borda esticando minha mão junto à dele, e no impulso de puxá-lo para fora, num ato de travessura, o homem-lodo jogou-me dentro da piscina.

Acordei no mesmo instante. Mesmo desperta, mas por talvez estar meio atônita, conseguia ouvir a voz do homem-lodo ecoando pelo quarto — e ele caía na gargalhada.

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Maria Mota
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